Trata-se de uma comédia verdadeiramente hilariante e descomplexada sobre o tema da poligamia e o choque entre o mundo rural e urbano, entre tradição e modernidade; Henri Duparc atinge aqui em pleno os seus objectivos: levar as pessoas a amar a Côte d'Ivoire e toda a África, conquistar o interesse de um público estrangeiro e mostrar-lhe outra forma de viver.
Bal Poussière from Africiné www.africine.org on Vimeo.
O título (Bal Poussière) deve-se a uma recordação da infância do próprio autor: na sua terra natal organizavam-se bailes num terreno de laterite, que era varrido, e no decurso da festa a poeira vermelha transformava-se num manto de tal forma denso que o baile tinha que ser interrompido até que a poeira assentasse!
Nesta visão propositadamente caricatural o espectador é convidado a rir abertamente mas também a reflectir sobre hábitos instituídos, a mutação das sociedades e a autocriticar-se. Henri Duparc, o realizador, sempre demonstrou uma enorme sensibilidade e uma clara preocupação com a condição feminina em África e soube usar o humor, arejado, genial e no tom certo, como um meio de despertar consciências e fomentar o diálogo sobre temas que, longe de serem consensuais, suscitam divergências e debates acalorados. No caso de poligamia descrito nesta comédia, profunda na abordagem e na intenção, Duparc usa a sua lucidez para expor sem julgar testemunhos de quem a vive na primeira pessoa: o próprio homem ou as suas várias co-esposas.
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Nesta movimentada ficção, a generalidade dos actores está perfeitamente à-vontade nos diálogos construídos com humor e irreverência e revela uma fresca naturalidade no difícil registo da comédia. De salientar, sem reservas, a magnífica prestação de Bakary Bamba no papel do protagonista.
"Semi-Deus" é um abastado proprietário rural que conta já com cinco esposas mas pretende casar-se com uma sexta, para harmonizar os dias da semana! A eleita é uma jovem estudante acabada de chegar da grande cidade, Abidjan, que o deixa obcecado pela sua juventude e beleza.
Este caricato personagem fará de tudo para conquistá-la e usará todos os trunfos de que dispõe: a sua riqueza, a sua inegável capacidade de persuasão e a sua influência na terra, onde é, de facto, um Semi-Deus, pois, logo depois de Deus, é a maior autoridade reconhecida pelos seus conterrâneos! Primeiro sonda o pai de Binta, a jovem pretendida, afogando-o em presentes, pressionando-o subtilmente: "Uma cola branca será um sim e uma cola vermelha será um não" - e assim ficam definidos os termos em que será comunicada a sua resposta. Este mostra-se inicialmente céptico, como convém (embora a hipótese de se converter num notável e melhorar drasticamente o seu estatuto lhe pareça bem mais apelativa do que dar ouvidos aos pruridos da sua filha!). O argumento que lhe ocorre para convencer a jovem é assustador, mas pincelado de um fino humor: "Todos os homens são iguais, só a fortuna os distingue!". Os pais de Binta, curiosamente, vivem um pacífico casamento monógamo. Por falta de posses do marido, mais dado ao despesismo e à indolência do que ao trabalho? Por escolha de ambos? Fica no ar a dúvida, sublinhada com jocosidade: terá o pai de Binta encontrado uma mulher que reúna em si todas as qualidades?
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Semi-Deus, pelo contrário, parece ter optado pela poligamia porque cada uma das suas esposas é única nas suas qualidades e funções, tanto na vida familiar como nos negócios. Cada uma destas mulheres foi objecto de escolhas, do marido e dos seus próprios pais, ficando a impressão de que elas próprias tiveram muito pouco a dizer sobre o assunto. Rivalizam constantemente pela atenção do fazendeiro, não hesitando em usar artifícios para o tornar sexualmente mais activo, sendo gentis e sedutoras, tratando-o com deferência e devoção. E ele? Retribui-lhes com pequenas oferendas e consagrando-lhes um quinto da sua atenção, consultando-as ocasionalmente em reuniões nas quais a sua palavra é a primeira e a única a ser cumprida. Estas afáveis co-esposas deixam entrever laços de afecto entre si mas também de enorme rivalidade, em função da preferência demonstrada pelo marido comum. Há um momento desconcertante em que Semi-Deus conversa com a primeira esposa sobre a filha, cortejada por um homem da terra; este afirma-se indignado pelo facto de o pretendente ter já duas esposas! E sublinha: "A pobreza nunca foi fonte de felicidade", ao que esta responde, com tristeza: "A poligamia também não"; e acrescenta que o teria certamente abandonado se tivesse uma profissão e não se encontrasse na sua dependência.
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A chegada de uma sexta esposa vai revolucionar todo esse universo tranquilo em que apenas uma voz se faz ouvir e respeitar. Binta desafia as regras, recusando submeter-se sem questionar: mesmo antes do casamento, diz ao seu futuro marido que gostaria de continuar a estudar, o que o deixa perplexo: "Mas tu já sabes ler e escrever!". E solta em seguida outra das suas magníficas deixas: "A instrução serve para encontrar trabalho, mas não faz falta para ter dinheiro".
Esta acaba no entanto por fazer valer as suas escolhas, partindo para Abidjan com o homem que escolheu para si, um jovem músico com quem mantinha uma relação antes de ser forçada a casar-se. Semi-Deus, o incorrigível galã, não perde tempo a chorá-la e rapidamente se deixa conquistar pela frescura de outra jovem da terra…
Luísa Fresta
Agradecimentos: Expresso o meu reconhecimento à Srª Henriette Duparc, que me proporcionou o acesso a documentação relevante, nomeadamente entrevistas concedidas pelo realizador acerca desta obra.
Publicado inicialmente no Jornal Cultura (Jornal Angolano de Artes e Letras) - edição LIX- 23/06/14